quinta-feira, 27 de setembro de 2007

COMO UM HISTORIADOR VÊ A BIBLIA

A Biblia é o maior best-seller da história do livro. Está disponíbilizada para cerca de 2.167 mil idiomas diferentes. Suas edições chegam a casa dos 2 bilhões de exemplares. Coisa de 85% da população mundial tem acesso a este livro que já conta com mais de 3 mil anos de vida, logo é uma anciã respeitável. Nunca sofreu qualquer baixa em suas vendas. É portanto um fenomeno de vendas e sobretudo um fenomeno cultural sem precedentes. É sobre este espetaculo cultural que modernos e pós-modernos travam a última batalha para saber afinal qual o lugar da Bíblia na diversificada biblioteca dos saberes que temos acumulado ao longo dos séculos. O que é um livro? a materialização de idéias, projetos, doutrinas e concepções de mundo. Artefato individual ou coletivo. Um produto intelectual que necessita de suporte material para circular. Se bem que com o mundo virtual, até a exigencia de suporte material cai por terra porque já existem os tais e-books. É, nos dias de hoje, também um artefato de consumo que incorpou técnicas e recursos de marketing e sofisticação gráfica para seduzir o consumidor. A Biblia, como o Livro dos livros, contém todas estas nuances sócio-culturais e, ao longo de sua história, sofreu profundas transformações importantes até chegar a ser o que é para nós hoje.

Em grego, Bíblia significa "dos livros". Ou seja, refere-se a mais de um texto e a um conjunto fantástico de autores, lugares e tempos distintos. Na Bíblia podemos encontrar de tudo, desde romance de suspense até investigação policial, passando por cantorias, lendas e exortações, e até, em tempos atuais, algo como auto-ajuda. É um Livro ficcional ou um relato fidedigno de eventos históricos? Os historiadores poderiam se utilizar dele para fazer ilações sobre o passado remoto e sobretudo sobre a pratica de vida de comunidades religiososas ou de confrontos politicos e etnicos entre diversos povos da antiguidade? É pouco provavel que a Biblia seja um texto histórico no sentido em que os historiadores do século XIX atribuiam a este termo.

Por conta da hegemonia dos historiadores positivistas, a Bíblia foi de fato relegada ao plano das narrativas ficcionais, mais próxima das artes literarias do que das ciencias humanas. Não continha o principal ingrediente para assumir o papel de reveladora de verdades históricas: faltava-lhe um método de trabalho e uma ferramenta objetiva de escavação de fatos. A Bíblia, na visão dos positivistas, era excessivamente subjetivista. Com a cultura pós-moderna, a Bíblia ganha novos olhares. Sobretudo para os pragmatistas americanos, não há sentido e nenhuma justificativa válida para mantermos os termos classificatórios dos discurso utilizados pelos positivistas. Sendo assim, a Bíblia, mesmo como discurso ficcional, deve sim ser tratada como uma obra válida, e, seus leitores, devem ser aceitos como interlocutores legitimos que encontram nela uma sabedoria que faz a diferença para a vida. Mais precisamente, os pragmatistas suplantaram a divisão entre discurso ficcional e cientifico, ao alocarem para o plano do privado o tipo de ensinamento que a Bíblia traz. Como a modernidade já havia feito a separação entre a cultura laica e a sagrada, cabe agora na pós-modernidade aceitarmos a Bíblia como mais um saber enriquecedor. Mais ainda: não há necessidade de nos apegarmos as disputas institucionais entre cientistas e teólogos. Como herdeiros destas disputas, podemos confirmar na pratica o bem que a ciencia fez a própria Bíblia na medida em que a libertou de preconceitos e dogmas que a torvam um saber intolerante e fundamentalista.

Todavia, ainda assim não creio que a Bíblia seja um documento histórico do modo como muitos sectários religiosos a interpretam. E aqui a critica não está baseada em um novo discurso positivista. Estou tentando argumentar que de fato a Bíblia ganhará mais adeptos e leitores inteligentes se for capaz de aceitar o lugar de uma sabedoria privada para a vida e não continuar com a pretensão de manter a rivalidade com a ciencia, tentando em alguns casos, substitui-la. É o caso do debate entre evolucionistas e criacionistas. A arquiologia pode confirmar vários relatos bíblicos, mas não pode endossar as pretensões espirituais que subjaz em diversas leituras. Podemos hoje ler a Bíblia como mais uma peça cultural da história da humanidade que se mantém ativa justamente por sua força persuasiva de fazer com que acreditemos, não de forma cientifica, mas de modo literario, em seus ensinamentos e portanto podemos nos satisfazer com a sua sabedoria. Não precisamos, se de fato somos leitores inteligentes, buscar provas extra-texto para confirmar a veracidade de suas assertivas. A Bíblia é um texto literario e enquanto tal deve ser lido e comentado. Não cabe à Bíblia tentar ocupar o lugar da ciencia moderna. Ela deve ocupar o espaço interior de nossas evocações e busca por sentido e valor para a vida. Creio que aqui ela é simplesmente imbatível.

Sergio Fonseca
Historiador

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